A EPOPÉIA DE GILGAMESH
UMA APRESENTAÇÃO DA EPOPÉIA DE GILGAMESH
SERRA, O. J. T. . A Mais Antiga Epopéia do Mundo: a Gesta de Gilgamesh. 01. ed. Salvador:
Fundação Cultural, 1985.
v. 01. 164 p.
Livro publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, em Salvador, no ano de 1985. Encerra uma apresentação da problemática histórico-literária da famosa Epopéia de Gilgamesh, de que apresenta uma paráfrase baseada em duas das mais conhecidas traduções do poema acadiano (a de Speiser, publicada na coletânea ANET - Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, Princeton University Press, 1955 ; e a de Adolph Schott (Das Gilgamesh Epos, Stuttgart, Reclam, 1958 ) e inspirada também em estudos a respeito da literatura súmero-acadiana de autoria de Jean Bottéro e Samuel Noah Kramer, entre outros.
I
INTRODUÇÃO
A maior parte dos textos que constituem a Epopéia de Gilgamesh procede de tábulas exumadas na capital Assíria de Nínive, na Biblioteca de Assurbanípal. Essa Versão Assíria (o texto padrão para os editores modernos), teria sido obra de Sînleque’unnenî, composta em princípios do primeiro milênio a. C., em um antigo dialeto acadiano.1 Austen Henry Layard a exumou em 1849 e sua primeira tradução moderna foi feita em 1880 por George Smith. Da Versão Babilônica Antiga, o que possuímos é um conjunto bem mais reduzido de textos, na maioria fragmentários, que remontam ao período entre 1750 e 1700 a. C. Os principais documentos que encerram esta versão paleobabilônica são conhecidos como Tábula de Filadélfia e Tábula de Yale (pelo nome das universidades onde se encontram hoje). Somam-se a eles os fragmentos “de Bagdá” e “de Chicago”, a peça “de Berlim” e a “de Londres”, entre outros. Posteriores coisa de quatro séculos são os fragmentos encontrados nos arquivos hititas, na capital do reino de Hatush, próximo à atual Boghazaköy, no centro da Ásia Menor (arquivos de uma rainha que manteve correspondência com Amenófis IV e seu filho, o que esclarece sua posição cronológica). Um desses fragmentos está escrito em língua acadiana, mas há várias linhas de um outro que parece ter sido uma resenha hitita da Epopéia de Gilgamesh; no mesmo sítio foram encontrados, também, fragmentos dela em hurrita. Depois disso, na antiga capital assíria ribeirinha do Tigre, Assur, acharam-se ainda parcos fragmentos do grande poema, datáveis do século VII a. C., mais ou menos; outros, da mesma data aproximada, foram encontrados em Sultantepe, ao norte da Mesopotâmia; outros ainda (datáveis, ao que tudo indica, do século VI a. C.), vieram a lume em escavações realizadas em Ur. Também se encontraram pedaços deste poema na Síria (em Ugarit) e na Palestina (em Megiddo).
O texto encontrado na Biblioteca de Assurbanipal encerra doze tábulas, mas a T. XII, como acabou de provar o sumerólogo Samuel Noah Kramer, corresponde a uma tradução literal de um poema sumeriano e pertence a um contexto diverso. É inegável, porém, que esta epopéia como um todo tem por base sagas sumérias do ciclo de Gilgamesh, sagas que remontam ao período entre 2150 e 2000 a. C., ou seja, à época do chamado Renascimento Sumério; foram reelaboradas e transformadas no campo semítico, onde nasceu a Epopéia propriamente dita. (A hipótese de um arquétipo sumério, defendida por Langdon, entre outros, não se impôs entre os eruditos).2 De acordo com a hipótese de Bottéro (1992), podem distinguir-se três momentos principais na história da composição deste poema:
(I) na época de Hamurabi (1750-1600), o autor da versão paleobabilônica conferiu uma unidade dramática a matéria de Gilgamesh’, herdada dos sumérios e já bem difundida entre os acadianos, reunindo e interconectando elementos vários dessa legenda em um todo único;
(II) entre 1600 e 1100, esta obra circulou pelo Oriente Próximo, modificando-se mais ou menos e acolhendo variantes episódicas na sua acidentada difusão;
(III) no começo do primeiro milênio, outro poeta(digamos, em respeito à tradição que guardou este nome, Sînleque’unnenî) made it new.3 Na literatura sumeriana, as composições épicas que conhecemos se agrupam em torno de três figuras principais de régios heróis semidivinos: Emekar, Lugalbanda e Gilgamesh. Outros relatos míticos poetizados em Súmer também foram aproveitados, em parte, na composição da Epopéia, como é o caso do Poema do Dilúvio.
Súmer foi a grande fonte. Os assírios e babilônios recolheram e continuaram a civilização sumeriana, de que outros povos, como os hititas e os hebreus, são igualmente devedores. Em Súmer inventou-se a mais antiga escrita do mundo,4 a cuneiforme, que os semitas mesopotâmicos adaptaram a suas línguas; note-se que eles conservaram o sumeriano como língua litúrgica e diplomática até cerca do Século I antes de Cristo.
Samuel Noah Kramer fez o levantamento e editou a primeira tradução das sagas sumérias que servem de base à epopéia em apreço (KRAMER, 1944, 1961). Eis os títulos que lhes foram dados:
Gilgamesh e a Terra dos Viventes
Gilgamesh e o touro celeste
A morte de Gilgamesh
Gilgamesh, Enkidu e os infernos
Gilgamesh e Aga de Kish 5
A antiga Lista dos Reis Sumérios reza que “o divino Gilgamesh, senhor de Kulab, reinou por cento e vinte e seis anos”. Pensando em reis como Sargão, por exemplo, que a legenda nimbou e antigos mitos envolveram, não é difícil aceitar que este soberano de Uruk foi uma figura histórica tornada legendária.
Uruk (em sumeriano Unuk) vem a ser uma antiga cidade mesopotâmia fundada pelos sumérios, ocupada e governada depois pela gente de Acad, em um sítio onde se acha a moderna Warka, na margem oriental do Eufrates, no sul do Iraque (segundo parece, o nome Iraque deriva do topônimo Uruk). A antiqüíssima urbe teve seu apogeu por volta do ano de 2900 antes da era cristã, quando era a maior cidade do mundo. Nos textos bíblicos, ela figura com o nome de Erech. A chamada “época de Uruk” da história da Mesopotâmia estendeu-se entre 4000 e 3.200 antes da era cristã. A Lista dos Reis de Uruk dá como seu fundador Emerkar. Gilgamesh consta nessa relação como o quinto rei de Uruk.
Enkidu, o grande companheiro de Gilgamesh, que tem o segundo papel de maior destaque na Epopéia, já era em Súmer um personagem muito importante. Um poema sumeriano o mostra como um deus ligado ao mundo agrícola, em confronto com o divino pastor Dumuzi, a quem ele disputou a posse de Inana, grande deusa regente da fertilidade (a Inana suméria corresponde à Ishtar dos Acadianos). Essa disputa entre agricultor e pastor ecoa (de forma bem mais violenta) na história do Gênesis que opõe Caim a Abel.
Os personagens divinos que aparecem na Epopéia de Gilgamesh também já figuravam no panteon de Súmer. Ao celeste Anu corresponde o divino An da antiga Súmer, onde o divino Enki, depois chamado de Ea pelos semitas, tinha o domínio das águas primordiais e Enlil já era adorado como o Senhor da Terra. O deus lua Sin, dos semitas, equivale perfeitamente ao Nana dos sumerianos, assim como Shamash, o sol divino dos assírios e babilônios, corresponde ao sumério Utu. Ishtar é o nome semita da deusa que os sumerianos já adoravam como Inana.
A epopéia também faz referência a outros personagens divinos: Adad (deus das tempestades); Aruru, como era também conhecida a grande deusa Ninhursag, que fez do barro os humanos; Ereshkigal, a implacável soberana dos infernos, e Nergal, seu terrível esposo; Ninsun, “a sábia”, mãe divina de Gilgamesh; Siduri, “a Taberneira junto ao mar profundo”, uma espécie de Circe mesopotâmia.
A Lugalbanda, ancestre e protetor de Gilgamesh, o poema atribui um estatuto divino, ou semidivino.
Personagem fantástico que desempenha notável papel na epopéia é o terrível Humbaba, ou Huwawa: o guardião da Floresta dos Cedros, eliminado por Gilgamesh e Enkidu.6 Também se destaca por sua importância na trama da grande narrativa épica o longínquo Utnapishtim — o Noé acadiano, que em Súmer tinha o nome de Ziusudra.
Nesta epopéia é possível descortinar os mitologemas fundamentais de uma cosmovisão pretérita, temas cujas variantes se articulam tecendo a legenda com trama sutil: a criação do homem, a vida “edênica” e seu desfecho por um trabalho de sedução, o combate com o monstro, a travessia subterrânea, a passagem pelas “águas da morte”, o dilúvio, a "árvore da vida"... Registram-se em seu texto ritos de remota origem, como a lamentação funérea, a hierogamia encenada pelo soberano e pela sacerdotisa, o sacrifício propiciatório, a evocação dos sonhos, a iniciação, a oniromancia... Ao arqueólogo logo acorrem, em cada passagem, as ilustrações mais ricas, que os relevos, as estrelas, a cerâmica, os sigilos, as esculturas, desde a época de Súmer até ao último império babilônico, poderiam fornecer: a árvore sagrada ladeada por animais hieráticos, um personagem divino entre feras submissas, o combate entre um herói e uma besta ameaçadora, cabeças de monstros, cenas de culto, figurações do "rei pastor", da grande deusa entre seus animais ou cercada de devotos, o pássaro fabuloso, as cenas de caça, o deus taurimorfo...
São muitos os paralelos que se podem traçar entre vários episódios da Epopéia de Gilgamesh e grandes criações culturais do Antigo Mediterrâneo. É ineludível a correspondência entre passagens deste poema e diversos textos bíblicos. (Súmer exerceu, como se sabe, forte influência sobre o substrato cananita da cultura hebraica). Mas a Epopéia de Gilgamesh também mostra pontos de convergência com notáveis obras gregas — em particular com os poemas homéricos, com a tragédia de Hipólito, com a legenda de Héracles... Todavia, no mundo helênico, temos escassa notícia a respeito de Gilgamesh; fala-se dele apenas em um trecho da História dos Animais, de Eliano.7
Desde que as descobertas de Austen H. Layard, Hormuz Rassan e George Smith, em meados do século XIX, trouxeram a lume, das ruínas do templo de Nabu e do palácio de Assurbanípal, em Nínive, as tábulas que correspondem ao corpo principal da primeira epopéia do mundo, esta obra magnífica tem exercido universal fascínio nos tempos para os quais renasceu. George Smith inicialmente concentrou sua atenção no relato do Dilúvio, que aí se encontra na Tábula XI. A ele se deve a publicação pioneira de fragmentos deste grande poema épico, aparecida no volume IV da famosa coletânea organizada por Rawlinson sob o título de The Cuneiform Inscriptions of Western Asia, em 1875. Foi este o marco inicial de uma rica série: testemunha o começo de pesquisas em que se tem empenhado uma plêiade de eruditos, assiriólogos e sumerólogos, engajados no resgate desta obra prima, durante muitos séculos esquecida. Desde então, têm aparecido muitas traduções da Epopéia de Gilgamesh (em inglês, francês, alemão, italiano, russo, holandês, sueco, dinamarquês, finlandês, tcheco, georgiano... O progresso das descobertas arqueológicas e a sucessão de edições críticas de fragmentos do poema encontrados, numa vasta extensão, por todo o Oriente Médio, têm feito com que elas se renovem e ultrapassem continuamente, enriquecendo-se cada vez mais graças ao avanço geral dos conhecimentos assiriológicos. O volume da bibliografia dedicada a este poema já é hoje muito considerável. E cresce continuamente.
Sempre convém lembrar a respeitada obra de Alexander Heidel intitulada The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, cuja primeira edição, pela University of Chicago Press, é de 1946. Também segue sendo justamente celebrada a tradução de A. Speiser — uma das mais conhecidas, em virtude de sua publicação no ANET - Ancient Near Eastern Texts relating to the Old Testament (New Jersey: Princeton University Press, 1955); outra igualmente prestigiosa e de ampla circulação vem a ser a de Andrew R. George, The Epic of Gilgamesh, editada pela Penguin Books (1999). Merecem ainda especial menção as traduções de Albert Schott, Das Gilgamesh Epos (Stuttgart: Reclam, 1958) e de Jean Bottéro, L’ Epopée de Gilgamesch, le grand homme qui ne voulait point mourir (Paris: Gallimard, 1992).
Passo agora a uma breve sinopse da grande epopéia. Não farei aqui a relação dos documentos a que este esboço se reporta (para isso ver Serra, 1985). Quero apenas dar uma idéia do magnífico poema, de modo a atrair-lhe leitores e tornar possível o melhor entendimento das considerações que se seguem.
II
SINOPSE
Gilgamesh, o soberano de Uruk, recebeu dos divinos os dons mais excelentes: beleza, sabedoria, vigor incansável. Ele tem dois terços de deus, um terço de humano. É como um touro selvagem, de porte soberbo, sem rival na terra. Não reconhece limites a sua vontade. Governa Uruk como um tirano: ao pai arrebata o filho, tira da mãe a filha moça; toma para si a esposa do bravo, a filha do nobre. Todos os dias, ao som do tambor, se alevantam os seus camaradas com inigualável tropel de armas. Os príncipes de Uruk, os anciãos do povo, reúnem-se aflitos em assembléia: "Gilgamesh" — dizem eles — "não deixa o filho a seu pai, nem a donzela a sua mãe. Arrebata a esposa do guerreiro e toma a filha do nobre. Será este o pastor de Uruk, prudente, firme, sábio? Dia e noite a insolência dele é sem freio!" O clamor se eleva e chega aos céus a queixa do povo. Os deuses, em conselho, decidem pôr termo à tirania de Gilgamesh. Dirigem-se então à divina Aruru, que em tempos remotos fizera do barro o primeiro homem: “Tu que criaste o homem, ó Aruru, cria agora um rival para Gilgamesh!”.
Aruru lavou as mãos e pôs-se a moldar no barro da estepe o valoroso Enkidu. Dotou-o de ingente força, de um vigor tão inabalável quanto o firmamento; são longos os seus cabelos, de tranças como o trigo; seu corpo é todo coberto de pelo. Entre as gazelas e as feras da estepe ele vagueia; com as criaturas selvagens, ele se dessedenta nos bebedouros. Seu coração se deleita na água. Um belo dia, um caçador avista-o na fonte; por dois dias o torna a avistar. Mas cheio de pavor, nem ousa aproximar-se. Volta para casa e diz a seu pai: "Meu pai, encontrei um indivíduo que veio dos montes, o mais forte da terra. Com as gazelas, ele se nutre de relva; com as feras da estepe ele vagueia e se dessedenta nas fontes, onde tem seu bebedouro. Desfez minhas armadilhas, desarmou minhas redes de caça. Ele não me deixa caçar!" O pai então lhe aconselha que se dirija a Uruk e tudo conte a Gilgamesh, que há de tomar as providências.
O caçador vai a Uruk e narra a Gilgamesh o que viu. O soberano lhe determina que leve consigo uma meretriz — uma serva do templo de Isthar — e com ela se dirija ao bebedouro freqüentado por Enkidu: assim que este apareça, a moça deverá despir-se — e tão logo o selvagem se volte para ela, seus animais o abandonarão.
Caçador e meretriz seguem caminho; postam-se ambos à beira da fonte, à espera de Enkidu. Quando este surge, a moça se despe e ele acorre. Durante longo tempo, jaz Enkidu nos braços da meretriz; depois de se ter saciado, volta-se de novo para seus animais. Estes, porém, não mais o aceitam; fogem dele as gazelas, as feras da estepe se afastam para longe do seu corpo.
Enkidu percebe, então, que muito se modificou: seus joelhos são menos flexíveis, ele todo não é como antes. Agora possui conhecimento, detém ampla compreensão. Retorna, pois, e se assenta junto da meretriz, atento as suas palavras. A meretriz assim lhe fala:
“Tu és ciente, Enkidu como um deus te fizeste. Por que vaguear na estepe, como animal selvagem? Eu te conduzirei à sagrada Uruk, onde estão os templos de Anu e Isthar, onde todos os dias são dias de festa e a bela mocidade é rica de perfume. À sagrada Uruk eu te conduzirei, onde vive Gilgamesh, perfeito em força, governando o povo como um touro selvagem! Quando o tiveres visto, tu o amarás como a ti mesmo”.
O coração de Enkidu se esclarece e ele anseia por um amigo. Replica à meretriz que há de acompanhá-la e desafiar Gilgamesh, clamando em praça pública:
“Eu sou quem pode modificar os destinos! É forte o nascido na estepe”!
Mas a moça o adverte de que o rei é poderoso e sábio, desfruta o favor dos grandes deuses:
"Antes mesmo de desceres dos montes, em Uruk Gilgamesh te vê em sonhos!”
Enquanto Enkidu conversa com a meretriz, Gilgamesh em seu palácio sonha que um estranho objeto, caído dos céus na praça do mercado de Uruk, provoca a afluência do povo e dos nobres. Gilgamesh tenta removê-lo, por que lhe impede a passagem; mas só o consegue quando os nobres lhe dão apoio. Ele então o leva e o consagra a sua mãe, a deusa Ninsum.
Em outro sonho, um machado de estranha forma tomba do céu no centro da praça; circundado pelo povo, detém e oprime o rei. Gilgamesh sente-se atraído por este objeto como por uma mulher; acaba por tomá-lo e consagrá-lo a Ninsum.
Ao despertar, o herói consulta sua divina mãe, a Sábia. Interpretando seus sonhos, ela lhe profetiza o advento de um companheiro de vigor tão grande quanto o seu, que há de tornar-se seu dileto amigo, seu companheiro inseparável.
A esse tempo, a meretriz e Enkidu dirigem-se à aldeia dos pastores. A moça reparte com ele as vestes e o conduz pela mão, como a uma criança. Os pastores, admirados, reúnem-se em torno de Enkidu; oferecem-lhe comida e bebida, mas o selvagem não sabe servir-se. A meretriz lhe ensina a comer e beber do alimento dos homens; depois o faz ungir-se e pentear os cabelos. Enkidu instala-se entre os pastores e torna-se a sua sentinela, dando caça às feras que assaltam o aprisco.
Um dia, entretanto, um homem de Uruk vem queixar-se a Enkidu da tirania de Gilgamesh, que ao esposo arrebata a esposa, no dia mesmo das bodas:
“Ele é o primeiro, o marido vem depois...”
A estas palavras, Enkidu empalidece; decide logo ir a Uruk e desafiar o rei. Quando penetra na cidade seguido da meretriz, o povo aglomera-se à sua volta e os nobres exultam.
Gilgamesh aproxima-se do templo de Isthar, onde deve celebrar-se o rito de sua união com a deusa, conforme a tradição de Uruk. Enkidu posta-se à frente, cerrando com o pé a porta do templo e impedindo a passagem do rei. Sem mais, Gilgamesh atira-se contra ele e principiam os dois a bater-se, como touros arremetendo. Vacila o portal do templo e os fortes muros oscilam com o entrechoque dos dois. Por fim, Gilgamesh dobra os joelhos, vencido. Enkidu, porém, reergue e exalta o adversário:
“Filho de Ninsum, a tua cabeça se eleva acima do povo. Anu te concedeu reinar sobre todo o povo!”
Imediatamente eles se abraçam e tornam-se amigos. Gilgamesh conduz ao palácio o novo camarada e faz com que ele tome assento a seu lado; ordena que os príncipes da terra lhe beijem os pés e o recomenda à mãe Ninsum.
Assim tem começo, para Enkidu, uma vida principesca. No entanto, malgrado o conforto e as honrarias, o antigo selvagem um dia sente-se mal e queixa-se a Gilgamesh:
"Ó meu amigo, um pranto sufoca-me o peito, meus braços afrouxam e o meu vigor tornou-se em fraqueza..."
Gilgamesh procura reanimá-lo e propõe-lhe, então, uma aventura extraordinária:
"Na Floresta dos Cedros habita o feroz Humbaba... Vamos matá-lo, tu e eu, afim de banir o mal da terra. Assim, faremos um nome que sobreviva às gerações."
Enkidu adverte o companheiro da extrema ferocidade do monstro que já uma vez divisara, no tempo em que perambulava na estepe com os animais:
"Sua boca é chama, seu hálito é morte! Por que concebeste uma tal façanha?"
Gilgamesh, porém, replica:
"Meu amigo, só os deuses vivem eternos sob o sol. Quanto aos homens, seus dias são contados. Tu mesmo, agora, temes a morte... Que é feito, Enkidu, de teu heróico vigor ?"
Estas palavras excitam o ânimo de Enkidu, que decide, então, afrontar o perigo, de modo a fazer para si um nome duradouro — uma nomeada que sobreviva às gerações. Dirigem-se os dois à Assembléia, a fim de comunicar seu projeto aos Anciãos do Povo. Estes advertem seu príncipe:
"Ó Gilgamesh, tu és jovem, teu coração te arrebata... Humbaba, seu rugido é o temporal do dilúvio! Sua boca é chama! Seu hálito é morte! Enlil o designou para guardar os cedros, como terror dos mortais!"
Mas Gilgamesh mostra-se inabalável e Enkidu toma a palavra para apóia-lo; em vista disso, os conselheiros acatam o projeto e confiam o rei ao valoroso Enkidu, que conhece a trilha do bosque, para que o proteja e livre das armadilhas. Os conselheiros concluem por abençoar o soberano e fazer-lhe várias recomendações:
"Possas tu, inocente, alcançar o que tanto desejas! Faz a Shamash libação de água pura e lembra-te sempre de Lugalbanda, teu protetor!”
Quando Gilgamesh consulta o oráculo, verifica com tristeza que não é propício. Mesmo assim — com as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto — mantém a decisão, alentado por Enkidu. Dirige-se com o amigo a Egalmah, ao templo de Ninsum, sua mãe, a fim de rogar que a Sábia dote seus pés de passos ponderados e interceda por ele junto a Shamash.
Ninsun sobe ao terraço do templo e propicia o deus Sol com oferta de incenso, encomendando-lhe seu filho de coração infatigável, para que o guarde na ida e no retorno. Em seguida, dirige-se a Enkidu, a quem adota como filho, e recomenda-lhe Gilgamesh.
Tem início para os dois a difícil jornada. Às portas de Uruk, eles são aclamados pelo povo que lhes faz votos de êxito; partem daí rumo à Floresta dos Cedros. Caminham durante longos dias, por ínvias passagens, fazendo em cada estação sacrifícios a Shamash.
Ao divisar a grande montanha, os dois heróis invocam-na, pedindo que ela lhes mande sonhos. Repartem entre si o tempo de vigília. Sonha Gilgamesh que um ser de extraordinária beleza vem livrá-lo de grande perigo; que o retira de sob a montanha e lhe dá a beber água de seu cantil; sonha, depois, que é acometido por um touro selvagem. A estes sonhos Enkidu dá uma interpretação propícia, predizendo que eles vencerão Humbaba com o auxílio de Shamash e Lugalbanda. Novo sonho os visita, uma visão de pavor:
"Os céus bramavam, a terra estrondava... O raio fuzilou, chovia morte!"
Apesar da sinistra aparência, Enkidu não vê nele o mau presságio. Os heróis continuam seu caminho, em direção à Floresta. Uma vez Enkidu fraqueja e Gilgamesh o reanima:
"Toca só minha veste e destemerás a morte!"
Mais adiante, é Gilgamesh que tem de ser encorajado pelo companheiro, ao defrontar-se com o vigia de Humbaba. Depois, na Porta do Bosque, a mão de Enkidu fica presa e se fere. Isso quase o faz desistir da aventura; Gilgamesh, porém, trata dele e o fortalece com um esconjuro.
Finalmente, os dois penetram na Floresta dos Cedros — "morada dos deuses, trono de Isthar" — e contemplam as árvores magníficas, que começam a abater.
Assim que ouve o ruído, o tremendo Humbaba avança furioso contra eles, enchendo-os de grande pavor. Gilgamesh suplica o auxílio do divino Shamash, que atira os oito ventos contra os olhos do monstro, deixando- imóvel e ofuscado à mercê dos heróis.
Humbaba roga a Gilgamesh que lhe poupe a vida, mas Enkidu intervém, opondo-se, quando o rei já se apiedava.
Indignado, Humbaba amaldiçoa Enkidu.
Por fim, eles degolam o monstro vencido.
Concluída a proeza, Gilgamesh trata de banhar-se e vestir seus trajes novos. A divina Isthar, impressionada com sua beleza, vem propor-lhe que se torne seu amante, com a oferta de grande fortuna:
“Tu serás meu esposo e eu serei tua esposa... Os príncipes todos te pagarão tributo!”
Mas Gilgamesh insulta a deusa, lançando-lhe em face o grande número de amantes que ela malsinou: Tamuz, votado aos infernos; o pássaro pastor cuja asa ela fez quebrar-se; o fogoso corcel que ela humilhou; o valente leão que ela fez cair nas armadilhas; o jardineiro do celeste Anu, que a deusa transformou em toupeira.
Isthar, indignada, sobe aos céus, queixando-se ao Pai Anu de ter sido coberta de vitupérios pelo soberbo Gilgamesh. Pede ao grande deus que crie o touro celeste e lho entregue, para que ela o faça investir contra o rei de Uruk. Anu pondera que foi Isthar quem provocou a questão; lembra ainda que o touro do céu destruiria as searas, causando fome e flagelo... Mas a deusa assegura que já providenciou "o trigo para o povo, a erva para os animais" — e ameaça arrebentar as portas do inferno, fazendo com que os mortos ressurjam e devorem os viventes.
O Pai dos deuses é obrigado a ceder.
Isthar lança o touro contra Uruk.
A fera devasta os campos, abatendo centenas de homens em cada arremetida.Gilgamesh apavora-se ao vê-lo e volta-se suplicante para Shamash, que alenta os heróis e os incita ao combate. Enkidu agarra o touro pelos chifres, agüentando seu impacto; a besta “lança-lhe a escuma na cara, esfrega-o com o grosso do rabo” até que Gilgamesh acode e mata o touro, enfiando-lhe a espada entre os cornos e o cachaço.
Enquanto os dois heróis exultam, Isthar furiosa salta sobre o muro de Uruk e invoca a maldição contra Gilgamesh. Então Enkidu arranca uma coxa do touro e lança-a no rosto da deusa gritando: "Se eu te pegasse, o mesmo que fiz com ele, eu teria feito contigo!”
Isthar corre humilhada para seu templo, onde a cercam seus devotos e as prostitutas sagradas. Gilgamesh e Enkidu, cheios de glória, voltam para sua cidade com os despojos do touro inane. Os artífices, admirados, medem os cornos da fera, que tem trinta minas de lápis-lazúli. Depois de fazê-los avaliar, Gilgamesh consagra-os a seu protetor, Lugalbanda.
A entrada em Uruk é um triunfo magnífico. De braços dados, os dois amigos recebem a aclamação do povo que se reuniu para admirá-los. Gilgamesh pergunta às hete-ras:
"Quem é o mais notável dentre os heróis? Quem, dentre os homens, é o mais glorioso?"
E respondem-lhe as jovens:
"Gilgamesh é o mais notável entre os heróis! Gilgamesh, dentre os homens, é o mais glorioso!”
À noite, em seu palácio, os triunfadores promovem uma grande festa; mas, quando, finalmente, eles se deitam, Enkidu tem um sonho nefasto e levanta-se sobressaltado para contá-lo. Neste sonho, ele vira os três deuses supremos, Anu, Enlil e Ea a deliberar sobre o destino dos heróis:
"Aquele que derrubou os cedros e matou o touro, deve morrer!" — disse Anu .
Enlil replicou:
"Enkidu deve morrer. Gilgamesh, não!”
Shamash interveio:
"Não foi por ordem minha que eles mataram o touro do céu e eliminaram Humbaba? Por que motivo o inocente Enkidu deve morrer?"
Enlil, furioso, voltou-se contra Shamash, a reprovar-lhe a condescendência.
Nessa altura Enkidu despertou.
Gilgamesh assenta-se lacrimoso à cabeceira do amigo:
"Ó irmão querido, eles vão poupar-me as custas de meu irmão!”
Enkidu definha em seu leito, dia a dia. Volta-se contra a porta dos bosques para maldizê-la, a falar-lhe como se ela fosse gente; maldiz, depois, o caçador que primeiro o avistara na estepe; por último, lança pragas terríveis sobre a meretriz:
"O faminto e o sequioso hão de bater na tua face.... A sombra do muro há de ser tua pousada, os restos da sarjeta serão teu alimento!”
Mas Shamash, que tudo vê e ouve, dirige-se a Enkidu e evoca o bem que lhe fizera a meretriz, vestindo-o com trajes novos, dando-lhe de comer do alimento digno de deuses e propiciando-lhe a amizade de Gilgamesh; lembra-lhe que Gilgamesh o fizera sentar-se a seu lado, honrando-o acima de todos; anuncia-lhe que depois de sua morte o rei lhe prestará as maiores homenagens: "Ele fará que o povo de Uruk chore e se lamente por ti; o povo jubiloso, ele encherá de pesar por ti...”
A estas palavras do deus, Enkidu converte em bênçãos as maldições que lançara.
Passa-se o tempo; cada vez mais o herói se debilita. Num sonho sinistro, vê-se arrebatado aos infernos, diante de Ereshkigal, a soberana do reino dos mortos. Próximo estão seus ministros e a multidão dos finados humanos: reis que outrora governaram a terra servem como criados; sacerdotes e acólitos, pontífices e príncipes, igualam-se aos comuns, na sombra e no pó...
Em prantos, Enkidu desperta, queixando-se da morte inglória. Em vão seu amigo o tenta consolar.
Por fim, o agonizante perece no leito. Gilgamesh, desesperado, vagueia na alcova como um leão; arranca os cabelos, lança fora seus adornos e em altos brados eleva a lamentação:
"Ó meu amigo mais moço, tu que caçavas o asno selvagem dos montes, a pantera da estepe... Que sono é este que sobre ti se abateu? Estás entorpecido e não podes ouvir-me!"
Depois de muito prantear o companheiro, o herói conclama os artífices a erigir-lhe uma estátua de ouro puro e lápis-lazúli; diante dela depõe libação de leite e mel. Ao raiar da aurora, cinge uma pele de leão e com seus cabelos por cortar se adentra na estepe, de coração pesaroso:
"Quando, pois, eu morrer, não ficarei como Enkidu?"
Assim vagando, penetra nos desfiladeiros, onde é assaltado por feras terríveis; suplica a proteção de Sin, o deus Lua, e trava com elas horroroso combate. Decide então ir até Utnapishtin, o longínquo e antiquíssimo rei que sobrevivera ao dilúvio, levado pelos deuses a habitar no mais remoto dos sítios, na foz dos grandes rios. Procurando a trilha que leva até o patriarca, Gilgamesh encaminha-se para a Cordilheira Mashu, que “dia após dia, monta guarda ao nascente e vigia o poente”. Lá chegado, defronta-se com os terríveis homens escorpiões, cujos halos coruscantes varrem a montanha, e eles o interrogam sobre o motivo de sua vinda. A princípio cheio de pavor, Gilgamesh recobra-se e solicita às extraordinárias criaturas que lhe indiquem o caminho. Um dos homens escorpiões contesta:
"Isso nenhum mortal, Gilgamesh, pôde jamais realizar! A trilha da montanha, ninguém a percorreu!"
Mas Gilgamesh lhe retruca:
"Mesmo com dor e pena, com frio ou calor, soluçando ou chorando, hei de ir... Agora, abre-me a porta da montanha!"
Franqueiam-lhe a passagem e ele se encaminha por um túnel de sombras que leva dez dias para percorrer, às cegas. Vai sair em um maravilhoso jardim de pedras preciosas, onde o lápis-lazúli carrega com folhagem e a cornalina resplende com frutos bons para a vista. Shamash compadecido o adverte:
"Ó Gilgamesh, a vida que buscas, tu não encontrarás!"
Mas o herói responde ao deus que depois de tanto penar não há de conformar-se:
"Que eu possa ter a minha parcela de luz! Possa alguém, que na verdade está morto, contemplar ainda a fulguração do sol!”
E segue caminho. Atinge o sítio remoto onde reside Siduri, a Taberneira, que prepara filtros em jarra de ouro. Quando o vê, ela o toma por um assassino e corre a fechar as portas, apavorada. Gilgamesh ameaça forçar a entrada e se anuncia como rei de Uruk, matador de Humbaba e do touro celeste, o herói que escalou as montanhas e penetrou a Floresta dos Cedros. Siduri o interpela: se é assim, porque ele tem um aspecto tão desolado e perambula na estepe como quem busca uma lufada de vento? Entristecido, responde-lhe Gilgamesh que se acha nesse estado desde a morte do irmão a quem muito amava — "Quando eu morrer, não ficarei como Enkidu?" — e arremata pedindo a Siduri que lhe indique a via conducente a Utnapishtin.
A Taberneira tenta desiludi-lo; argumenta que os deuses, ao criar o mundo, reservaram a morte para os homens, retendo a vida eterna em suas próprias mãos. Gilgamesh deve, pois, resignar-se: procure ter farto o ventre e sempre se distrair, dançando e folgando, noite e dia; dê atenção ao filhinho que lhe segura a mão e goze o amor da esposa, "pois é isto o que cabe aos homens”. Mas o herói insiste na sua demanda e Siduri acaba por indicar-lhe o sítio à beira do oceano onde poderá encontrar Urshanabi, barqueiro de Utnapishtin. Adverte-o de que é perigosíssima a travessia — "Quem, senão Shamash pode os mares atravessar ?" — pois a meio ficam as intocáveis “águas da morte".
Gilgamesh embrenha-se na floresta onde trava novo combate com seres desconhecidos, destroça misteriosas "coisas de pedra". Por fim, ele se defronta com o longínquo barqueiro. Urshanabi faz-lhe as mesmas perguntas que a Taberneira e tem idêntica resposta. Quando Gilgamesh lhe solicita a passagem, o barqueiro lamenta ter o herói arrebentado as "coisas de pedra" e dispersado as "serpentes urnu", dificultando mais ainda a travessia. Exige que o herói lhe traga sessenta postes untados de betume e providos de virolas; Gilgamesh obedece. Com esse equipamento, os dois dão inicio à travessia. No que chegam às "águas da morte", ambos arremessam os postes de modo a não tocá-las — até que atingem a outra margem, de onde Utanapishtin, cheio de espanto, espreitava sua chegada.
Depois de ser interpelado por Utnapishtim como o fora por Siduri e pelo barqueiro — e de responder-lhe nos mesmos termos —, Gilgamesh, por sua vez, interroga o venerando personagem sobre o segredo da imortalidade. Em resposta, faz-lhe ver Utnapishtin que o seu magnífico privilégio fora alcançado em circunstâncias extraordinárias, impossíveis de repertir-se; conta-lhe, então, como os deuses, outrora, decidiram submergir a terra no horrendo dilúvio e como seu protetor, o sábio Ea, por meio de um ardil, avisou-o deste desígnio divino, ordenando-lhe a construção de um barco gigantesco no qual deveria reunir "as sementes de todas as coisas vivas". Relata a faina da construção e as equívocas respostas que, instruído por Ea, dava à curiosidade do povo; narra como, depois do prazo que o deus lhe concedera, teve início a calamidade, com o vendaval furioso arrasando a terra por sete dias e sete noites.
"A ampla terra foi partida como um pote!"
Mesmo os deuses, filhos de Anu, apavorados e humildes, encolheram-se como cães junto aos muros dos céus; já os homens tinham todos retornado ao barro. Com a cessação das chuvas, o barco estacou junto ao monte Nisir. Depois de assegurar-se da estiagem despachando pássaros sucessivamente, Utnapishtim desceu e fez um sacrifício. Os deuses acorreram aspirando o perfume das libações; por último veio Enlil, que determinara o dilúvio. Este deus, a princípio, ficou indignado, "porque escapou alma viva"; contudo, aplacado por Ea, resolveu, depois, favorecer Utnapishtin e sua mulher com o dom da vida eterna, levando-os a habitar "bem longe, na foz dos rios".
"Mas agora" — terminou dizendo Utnapishtin — "Quem, por tua causa, iria reunir os deuses em assembléia?"
Dito isso, Utnapishtim resolveu submeter o obstinado herói a uma prova: impôs-lhe uma vigília de sete dias e sete noites.
Gilgamesh, presa de extrema fadiga, logo adormeceu.
Utnapishtin ordenou a sua esposa que cozesse bolos — um por cada dia que o herói permanecesse dormindo — e os depusesse ao seu lado. Ao sétimo dia, ele despertou o herói. Gilgamesh tentou discutir, afirmando que mal cerrara os olhos quando Utnapishtin o veio despertar... Mas este mostrou-lhe os bolos: os primeiros já se encontravam em estado de decomposição...
O herói começou a lamentar-se:
“Que farei agora, ó Utnapishtin, pois o saqueador enleou meus membros... Onde quer que eu esteja, a morte está!"
O patriarca ordenou a seu servo Urshanabi que providenciasse o banho do herói e lhe fornecesse trajes novos, a fim de que ele pudesse retornar a sua cidade.
Quando Gilgamesh já se aprestava para a partida, a esposa de Utnapishtin insistiu com o marido para que agraciasse o herói com algum valioso presente, um dom de sua hospitalidade merecido por quem viera de longe e sofrera tantas tribulações. Utnapishtin revelou a Gilgamesh o segredo de uma planta miraculosa encontrável no fundo das águas, dotada da virtude de rejuvenescer os mortais. Gilgamesh partiu imediatamente à procura, mergulhou e colheu o arbusto; voltando à tona, encheu-se de júbilo, afirmando a Urshanabi, seu companheiro nessa jornada, que havia de levá-la para Uruk e fazer com que todos a comessem. Em seguida, depôs a planta em um canto e correu a banhar-se alegremente em fonte de água pura; mas enquanto isso uma serpente sorrateira apareceu, roubou e devorou a preciosa planta, mudando logo de pele... Gilgamesh lamentou-se: "Urshanabi, por quem foi gasto o sangue de meu coração? Para o leão da terra foi o meu beneficio!” Depois de prantear assim, o herói seguiu caminho desiludido, até deparar-se com os muros de Uruk; então passou a mostrar ao barqueiro sua bela cidade: "Vê, Urshanabi, como são amplos os seus muros! Os Setes Sábios lançaram suas fundações!"
O poema se conclui com a exaltação de Uruk.8
III
COMENTÁRIO
Gilgamesh é um personagem que as tradições religiosas sempre ligaram aos infernos. Antigas tradições lhe atribuíam o papel de Juiz do reino dos mortos. A epopéia não fala disso... Mas não são poucas as passagens deste poema que evocam os domínios da morte. E seu argumento destaca a ultrapassagem, que o herói realiza, de limites do espaço humano, da vida humana comum: a transposição de fronteiras tidas como inabordáveis, de éskhata. Neste sentido, ela se aproxima da escatologia.
A façanha principal do grande herói de Uruk — sua viagem aos confins da terra — qualifica-o como alguém que tocou o extremo; é aquele que tudo viu não só por ter descortinado o pretérito e o remoto, veiculando a narrativa do dilúvio que o longínquo Utnapishtim transmitiu-lhe — o relato de um “fim do mundo” —, mas também por ter percorrido o caminho que "homem nenhum pode atravessar"; assim foi que ele descortinou o horizonte da existência humana... demarcado pela morte. Este "destino de todos os homens", nenhum herói como ele o vivenciou — nem mesmo Adapa, simples vítima de um logro divino.9 Em sua busca desesperada de imortalidade, Gilgamesh vive a morte como ninguém, porque dramaticamente a conscientiza.
Sua primeira e decisiva aventura consistiu em penetrar a Floresta dos Cedros, praticamente inacessível aos mortais, dando combate a um monstro. A Floresta é chamada "morada dos deuses". Quando decepam os cedros e eliminam o guardião do bosque sagrado, Gilgamesh e seu companheiro Enkidu incorrem numa transgressão extraordinária. É o que se depreende das palavras dos deuses reunidos em conselho: a juízo deles, foi tão desmesurada a façanha que só a morte de um dos atrevidos a podia compensar. Gilgamesh vê-se poupado "às custas de seu irmão" e só permanece entre os vivos em virtude desta "troca". É como se Enkidu o substituísse no outro mundo.10 No episódio da Epopéia em que Gilgamesh repele as propostas amorosas de Ishtar, provocando sua ira terrível, deparamos a grande deusa em um de seus desempenhos mais típicos, como a sedutora cujo amor fatal se impõe ao macho e o submete, ou aniquila. Ela que é, ao mesmo tempo, a mãe todo-paridora, a tirânica amante, a prostituta orgulhosa do título, a matrona a reinar sobre as fontes da vida, é também a Destruidora. Seu amor conduz ao sacrifício do companheiro. De resto, Ishtar — como a Inana suméria, a que corresponde — é a grande protagonista de uma descida aos infernos. De maneira significativa encontram-se associadas a esta deusa as figuras heróicas de Gilgamesh e Enkidu, desde as sagas de Súmer. No episódio evocado, o herói fundamenta sua rejeição da grande deusa recordando o destino que tiveram os anteriores amantes dela: pelo temor do desenlace trágico, resiste ao encanto da "sereia" que elimina ou, como Circe, submete a cruel metamorfose quem para ela for atraído (e de qualquer modo o degrada). O mais famoso desses consortes divinos (Tamuz, Dumuzi) foi condenado a substituí-la nos infernos. Gilgamesh receia seu destino... A rejeição de Ishtar por Gilgamesh tem como pano de fundo a ligação entre eles. Gilgamesh é o rei que centraliza o microcosmo de Uruk; a cidade depende de seu desempenho religioso... que envolve um enlace com a grande deusa. Nesta epopéia, vemos o herói dirigir-se para um hiéros gámos com ela (provavelmente, uma sagrada cópula com sua sacerdotisa suprema).
Por sua vez, Enkidu — pretendente de Inana em um poema sumeriano — tem sina trágica que o aproxima igualmente de Tamuz. Na grande epopéia, a morte do amigo de Gilgamesh (sentenciada pelos deuses) sem dúvida deveu-se também a seu comportamento insolente para com Ishtar, assim como a irreverência de Dumuzi / Tamuz para com Inana/Ishtar determinou sua perda.11
Nesse episódio da Epopéia fica patente que a grande deusa enfeixa os poderes da vida e da morte; isto se evidencia quando ela, imperiosa, consegue de Anu o Touro Celeste, sob a ameaça de destroçar as portas do inferno, provocando a saída dos mortos: Ressuscitarei os mortos, devoradores dos vivos! O número dos mortos, o dos vivos farei superar! Considere-se agora o sonho premonitório que Enkidu relata a Gilgamesh, pouco antes de falecer: este sonho dá uma descrição dos infernos, para onde ele sentiu-se arrebatado; a descrição representa uma verdadeira catábase onírica. Morto Enkidu, Gilgamesh chora profusamente o amigo, faz erigir-lhe uma estátua e celebra um rito fúnebre com a clássica oferenda de leite e mel. Com um desespero que lembra o pesar de Aquiles por Pátroclo, o rei se despoja de suas vestes e ornatos para proferir a lamentação, na qual estende o pranto por Enkidu à urbe, à seara e aos animais da estepe, testemunhas de sua origem extraordinária. Adiante toma-se conhecimento da vã esperança que ele chegou a ter em uma ressurreição do amigo... A morte do companheiro assinala o início da viagem extraordin|ria do herói “em busca de vida”, ou seja, de imortalidade. Esta busca o leva {s fronteiras do mundo.
No remoto ocidente ficam as montanhas de Mashu "cujos cumes alcançam a cúpula do céu e cujos peitos tocam os infernos, abaixo".12 No seio desta cordilheira, Gilgamesh empreende uma longa jornada pela treva (descrita conforme um padrão da poética semita de repetição progressiva que atualiza o percurso, enunciando as etapas uma a uma: processo mimético com freqüência relacionada à consumação de um ritual). Repare-se que esta montanha é guardada por seres horrendos de natureza sobre-humana: os homens-escorpiões, detentores do "olho de morte" característico das sentinelas infernais. O nome sumeriano do reino dos mortos, "Kur", significa também montanha, ponto extremo ou terra estrangeira... Convém lembrar a "montanha cósmica" em que, segundo a cosmologia sumeriana, céu e terra outrora se misturavam caoticamente; após efetuada a separação que inaugurou o mundo, essa montanha susteria apartada a cúpula celeste, tocando-lhe a base o próprio inferno.
Ao ressurgir da tenebrosa caminhada subterrânea, o herói chega, finalmente, ao esplendor de um bosque de pedras preciosas. Neste sítio extraordinário, os frutos perenes refulgem "opulentos para a vista" com o brilho mineral que dorme nas entranhas da terra. É clara a correspondência com a façanha de Héracles em sua jornada ao “Jardim das Hespérides”. Numa das versões do mito, por sinal, Atlas — o titan que sustenta o céu, gigante de porte de montanha — é quem entrega a Héracles os áureos pomos. É cogente a analogia entre Atlas e Ubelluri, gigante da mitologia hitita que desde as profundezas do mar susterria o arcabouço do mundo. Perto de seus domínios ficava a deusa Hebat, tão remota como Siduri... (Na sua rescensão da epopéia de Gilgamesh, os hititas “traduziram” Siduri por Hebat). Bem se vê que Gilgamesh, como Héracles, vai {s fronteiras do mundo...
O grande protetor de Gilgamesh nas suas aventuras é o deus sol Shamash (sumeriano Utu). Antes de avançar para a Floresta dos Cedros, é a ele que os heróis propiciam; a ele Ninsun recomenda seu filho. Este divino aliado coopera, ativamente, na luta contra Huwawa e encoraja os amigos surpreendidos pela arremetida do touro celeste. No sonho de Enkidu, Enlil censura Shamash pela excessiva benevolência para com os atrevidos humanos. Já no poema sumeriano Gilgamesh na Terra dos Viventes, diz-se de forma expressa que esta região está os cuidados do deus Sol; por sinal, é para ele que Huwawa apela, como a seu criador e amo... Ora, sabe-se que Shamash era identificado também com Nergal, senhor dos infernos. Esta identificação surpreende, mas tem sua explicação em outros enunciados míticos.
Quando vê Gilgamesh em busca da vida perene, o Sol divino o adverte, em tom compassivo, de que é vão seu intento; a Taberneira, por sua vez, insiste em que "só o valoroso Shamash atravessa o mar". Mas já antes disso, na "passagem da montanha", ficamos sabendo que Gilgamesh "pela estrada do sol se encaminhou". Submergindo no oceano, atravessando as entranhas da terra, o astro divino desempenha uma misteriosa catábase, a rigor paradigmática. Vem a propósito a lembrança da gesta cananita de Baal e Anath (GINSBERG, 1955). Nesse poema, ao advertir seus mensageiros do perigo de se aproximarem demasiado de Mot, diz Baal:
Mesmo Shapsh, a tocha dos deuses,
Que sobrevoa a extensão do céu,
Queda nas mãos de Mot, querido de El!
Na epopéia mesopotâmia, a longínqua Siduri bem adverte a Gilgamesh: Só Shamash atravessa o vasto mar... (e volta). A imagem de Héracles fazendo essa travessia na taça de Hélios acode logo à lembrança...13 É quase inevitável recordar também os versos amargos de Catulo:
Soles occidere et redire possunt.
Nobis, cum semel occidit brevis lux,
Nox est perpetua, uma dormienda.14
Para chegar até Utnapishtim, Gilgamesh atravessa as Águas da Morte, transportado por um misterioso barqueiro; vai a seu encontro por indicação de Siduri, a Taberneira "que reside no mar profundo"; esta manipuladora de filtros, isolada nos confins com sua dourada jarra de misturas, encarna um dos aspectos da multifária divindade feminina, enquanto detentora do segredo mágico das poções: corresponde à divina Circe que tinha sua morada a caminho do Hades. O proceder violento de Gilgamesh ao encontrar-se com ela mostra-se análogo ao de Odisseu, no momento em que este deparou a "temível deusa de voz humana" e a ameaçou; a maga apavorada deu-lhe, depois as indicações do percurso rumo aos infernos. Também Gilgamesh inspirou pavor a Siduri, mas dela obteve, depois, a orientação solicitada.
Odisseu receava de Circe a degradante metamorfose a que foram submetidos seus companheiros; temia, também, que o amor funesto da deusa viesse a privá-lo da vida, ou da virilidade. Quanto a isso, pode-se aproximá-la de Ishtar.15 A planta miraculosa que devolve a juventude jaz sob as profundezas do oceano, aonde desce Gilgamesh para obtê-la, como senhor do "segredo dos deuses", presente de Utnapishtim. Não a conserva por muito tempo: a serpente — um animal "ctônico" — rouba seu precioso dom, rejuvenescendo em seguida. (O pormenor com certeza se refere à mudança da pele característica do réptil). Essa planta que floresce no fundo das águas tem características mágicas que a ligam com o outro mundo. Gilgamesh então realiza mais uma viagem extrema que o leva a um domínio em princípio inacessível aos humanos, onde obtém um privilégio extraordinário: chega perto de ultrapassar a condição mortal...
Na segunda parte do poema sumeriano Gilgamesh, Enkidu e os Infernos, a trama desenvolve-se em torno de um arbusto que, crescendo às margens do Eufrates, foi um dia submerso pelo rio e salvo das águas por Inana; a deusa o replantou com o intuito de aproveitar seu lenho, mas viu-se obstada por três figuras infernais: um demônio feminino, o pássaro Indugud, e a serpente "que não conhece encanto". Quando Inana suplica o auxílio de Utu, Gilgamesh intervém de modo providencial e é recompensado com objetos que a deusa fabrica desta "árvore-hulupu": o "pukku"e o "mikku", muito provavelmente um tambor e uma baqueta; em todo caso, objetos com certo valor de talismã.16
No poema acadiano sobre a gesta de Etana, figura uma árvore habitada pela águia em sua copa e pela serpente em sua raiz. A águia, por intervenção de Shamash, leva Etana ao céu (subir ao céu e descer ao interno são, num plano profundo, feitos que se equivalem). Lá o herói vai buscar, segundo suas palavras, a planta do nascimento e lá lhe são entregues as insígnias de realeza (báculo,tiara, coroa etc.). 17 A conquista da “planta do nascimento” equivale { instituiç~o da realeza, representada por suas insígnias. Ora, o objeto oriundo da huluppu submersa tem relação com os poderes do rei e constitui um aparelho sagrado, investido de uma capacidade mágica especial.
Na Tábula XII, Gilgamesh queixa-se de que seu pukku e seu mikku (tambor e baqueta?) caíram nos Infernos. No poema sumeriano que corresponde ao original dessa versão, lê-se o motivo: "o pranto das moças".
Isto levanta uma questão de grande interesse. No início da Epopéia aqui discutida, o rei de Uruk é caracterizado como um tirano que "não deixa o filho a seu pai, a donzela a sua mãe" e arrebata "a filha do guerreiro, a esposa do nobre". Imaginando que esta tirania se concretiza, em parte, na arregimentação arbitrária dos jovens de Uruk para a tropa do monarca ("ao som do tambor alevantam-se os seus companheiros"), compreende-se o papel do instrumento. Quanto ao outro aspecto — o abuso cometido contra as donzelas de Uruk — acha-se adiante um esclarecimento maior: segundo se infere da queixa apresentada a Enkidu por um cidadão indignado, o soberano aplica, ao que parece, o "jus primae noctis" ("ele é o primeiro, o marido vem depois") com fundamento numa prerrogativa cedida pelos deuses ("quando se cortou seu cordão umbilical / isto para ele foi decretado"). E logo se fica sabendo que os enigmáticos objetos são utilizados também neste caso: diz-se claramente que Gilgamesh dispõe "do tambor do povo para escolha de bodas".
No citado poema sumeriano há um trecho pouco inteligível, em seguida à tomada de posse do talisman por Gilgamesh, que parece, segundo Kramer (1961), referir-se a um misterioso procedimento despótico do rei. Acredito ser muito provável que se trate, também nessa instância, do "jus primae noctis". De qualquer modo, é patente a relação entre o acontecimento catabático e o estranho processo nupcial. Ritos de bodas apresentam, em diferentes culturas, muitas correspondências com ritos fúnebres; violação e morte se correspondem, em certa concepção religiosa; nos mitos, o "raptor" é um caráter "tanático".18 Mas que representa o "direito da primeira noite"? O defloramento (que em algumas sociedades tem de ser executado por elemento estranho à boda) talvez fosse visualizado pelo prisma religioso como um ato sacrifical, ou seja, como um tributo pago às potências que regem os domínios conexos da morte e da fertilidade, uma cruenta primícia cobrada pelo deus, através de um seu representante — com freqüência o soberano. *** As duas jornadas que constituem o argumento nuclear da epopéia de certo modo se equivalem, por seu sentido último de aventuras extremas. Elas apresentam correspondências marcantes. A primeira, realizada pelos dois heróis, termina com a morte de um deles; a segunda, com a certeza da morte que o outro adquire. De ambas consta a travessia de montanhas, penosa e significativa; no termo das duas alcança-se uma região em princípio inabordável. Segundo Fontenrose (1959), o combate contra feras que Gilgamesh empreende na última seria uma versão atenuada da pugna entre o herói e o monstro na primeira dessas expedições. A interferência de Shamash é também fundamental em ambos os casos.
Uma íntima conexão liga os dois personagens principais desta epopéia. É ineludível a identidade profunda de suas figuras que se compenetram, unidas pela mesma sina, por sua idêntica constituição de teomorfos humanos. Suas afinidades se revelam até no momento em que os dois se confrontam, ou seja, na luta que opõe o tirânico soberano de Uruk e o generoso selvagem suscitado pelos deuses. Note-se que um fragmento hitita19 caracteriza Gilgamesh como feitura divina — tal qual Enkidu. A criação de Enkidu pela "demiurga" Aruru é descrita neste poema de modo claramente idêntico ao modelo da narrativa da criação do homem, "Lullu", num poema acadiano que remonta às mesmas fontes (sumérias) que o relato hebraico do Gênesis. Aruru faz o herói à imagem e semelhança do deus do céu ("no seu imo concebeu um sósia de Anu") moldando o barro, como ela fizera o homem ("Tu, Aruru, que criaste o homem, cria-lhe agora um símile!").
Este Enkidu selvagem a princípio leva uma vida edênica, em estado de natureza: circunscrito à mata, plenamente identificado com o mundo animal, toma sob sua proteção os bichos, feito um divino "Senhor das Feras". Então inexiste para ele a sociedade humana: esta lhe é rigorosamente alheia. Na verdade, ele a hostiliza, em sua campanha anti-venatória... Todavia o selvagem muda de lado com a chegada da meretriz, depois que a desfruta... A união com a mulher sedutora vai levá-lo ao domínio social, tirá-lo da pura natureza. A meretriz lhe é levada por ordem do rei de Uruk; seria, com certeza, uma hierodula do templo de Ishtar, uma de suas prostitutas sagradas. Assim sendo, pode-se dizer que ela representa a deusa.
A iniciação amorosa de Enkidu equivale à sua humanização. Uma conseqüência deste sucesso faz lembrar o texto do Gênesis. É quando a prostituta diz ao herói:
Tu és ciente, Enkidu, como um deus te tornaste!
Acusa-se então um ganho de conhecimento, que aproxima perigosamente o homem da divindade. Esse ganho acarreta ainda um outro efeito: o cisma dos animais, ou seja, a separação entre homens e bestas — tema igualmente referido na tradição hebraica. Neste caso, o cisma é consentâneo à modificação do selvagem, que também fisicamente se altera:
Surpreendeu-se Enkidu, pois seu corpo se endireitava;
Seus joelhos ficavam rijos, pois seus animais se foram...
É notável a progressão: primeiro, Enkidu conhece mulher (como se diz na Bíblia); em seguida, tem um ganho de saber, ou seja, de consciência: descobre-se humano.Logo seu corpo se modifica, como a sinalizar a mudança... E a descoberta que precipita essa transformação traz consigo uma nova carência: Enkidu logo sente necessidade de comunicação com um semelhante — ao tempo em que perde a comunicaç~o com “seus animais”:
Esclarecido seu coração, ele anseia por um amigo.
Resta assinalar outra conseqüência da transformação. Ela ecoa na queixa de Enkidu moribundo — nas pragas que este lança contra a meretriz — e se acha implícita no próprio desenvolvimento do poema: ao iniciar-se no amor, Enkidu submete-se ao destino mortal.
Geração e morte estreitamente se ligam, implacavelmente se enlaçam: rendendo-se aos encantos da hierodula representante de Ishtar, Enkidu, de certo modo, faz-se vítima da deusa por cujos dons se humanizou — pois este processo implica um compromisso com a morte.
Neste ponto, parece dar-se no pensamento dos mesopotâmios o mesmo que acontece na perspectiva grega: os homens situam-se entre os deuses e as bestas e se caracterizam, nesse intermédio, como mortais. Ora, uma coisa é certa: gregos e mesopotâmios sabiam perfeitamente que os demais bichos também morrem... Ainda assim, ligavam de um modo especial a mortalidade aos humanos. Esses povos antigos tinham consciência, pois, de que a morte marca os homens de um modo singular, afetando seu conhecimento de si mesmos e do mundo, sua relação com o mundo.
As etapas da introdução do herói selvagem à vida civilizada apresentam certa correspondência com "ritos de passagem". Esses ritos, como se sabe, possuem profundas conexões como "mysterium mortis", central em toda iniciação.
Primeiramente, Enkidu esqueceu onde nascera; a seguir, narra-se como ele foi vestido e conduzido à sociedade dos pastores, recebendo alimento e bebida de civilizados (alimentos que sofrem preparação); por fim, depois de ungido e ataviado, ele tornou-se "sentinela dos pastores", cumprindo vigília.
Sucede logo o relato dos sonhos premonitórios de Gilgamesh acerca do advento de seu rival e futuro companheiro de aventuras, relato que curiosamente se interpenetra com a fala da meretriz a Enkidu. Por fim, após o embate dos dois, quando já se tornou no amigo dileto do soberano, Enkidu lastima-se, aparentemente nostálgico da antiga vida selvagem; para ele Gilgamesh pede graça à mãe Ninsun, e procura convencê-lo a conquistar a "fama vividora". De algum modo ele já se sentia preso à sina de mortal.
Assim se descreve uma primeira etapa da narrativa épica, em que Gilgamesh e Enkidu são apresentados, descreve-se a sua origem e seu posterior confronto; segue-se a grande jornada à Floresta dos Cedros, que implica a luta contra Humbaba e, no retorno, a peleja contra o touro celeste. Há um clímax (o triunfo dos heróis) seguido violentamente de um anticlímax: a agonia e a morte de Enkidu.
O episódio das exéquias de Pátroclo tem sido comparado com propriedade ao do pranto de Gilgamesh por seu amigo na epopéia do Próximo Oriente. No entanto, é preciso reconhecer que o texto homérico, nessa passagem, apresenta um colorido mais sinistro: haja vista o sacrifício de vítimas humanas, os prisioneiros troianos imolados diante da pira de P|troclo. No drama do “melhor dos aqueus”, o páthos da vingança prevalece. Gilgamesh não tem este gravame em sua desesperada lamentação por Enkidu. Ele encara de um modo direto a rigorosa expressão da morte. Senão vejamos...
Aquiles se lamenta como homem injuriado, frustrado: ele sabia desde muito que sua vida seria breve e a tinha preferido assim, contanto fosse cheia de glórias. Mas acumulou malogros: lesado na sua timé (nas honras que lhe usurpou o "Rei dos Homens") e privado do amigo querido, o filho de Peleu chegou ao paroxismo da dor. Celebrando os faustosos funerais, adiou a incineração do corpo inane a pranteá-lo com insaciáveis lamentos, até que a sombra de Pátroclo, emergindo do tenebroso seio noturno, veio exortá-lo a entregar às chamas o cadáver, para que a alma vagante pudesse, enfim, chegar ao reino de Hades.
Aquiles não discute a fatalidade da morte: hesita em separar-se dos despojos do caro defunto apenas pela dor do definitivo afastamento. Quando chora Pátroclo, ele está bem longe de repelir a idéia de seu próprio fim: sabe que abreviará mais ainda sua existência matando Heitor — mas ainda assim obstina-se na vingança. Em suma, ele já estava ciente de que teria vida breve, já se havia compenetrado disso... E foi de modo consciente que precipitou seu próprio fim, ao correr para a vingança. A aceitação da morte assinala o termo de sua trajetória heróica.
É bem diferente a atitude de Gilgamesh. Ao falecer-lhe Enkidu, ele toma consciência plena da morte, como se a deparasse pela primeira vez, só então percebendo sua crueza. A princípio, ele parece esperar que o amigo ressuscite a seu pranto; por sete dias e sete noites fica a seu lado, sem decidir-se a sepultá-lo, até que o cadáver apresenta sinais indiscutíveis de putrefação.
A dor de Gilgamesh aprofunda-se com o dar-se conta de que o mesmo lhe ocorrerá:
Quando eu morrer, não ficarei como Enkidu?
É, pois, a idéia da própria extinção que lhe sobrevém nesse transe e lhe aumenta o desespero. O sentimento do absurdo da morte toma posse dele e o induz à extraordinária aventura da busca da imortalidade. 20 Depois deste trágico acontecimento, transcorre a segunda jornada, que culmina com o encontro de Utnapishitim, o Noé acadiano (idêntico ao Ziusudra sumério). De novo, há um clímax e um anticlímax, que correspondem, respectivamente, à conquista e à perda da planta da juventude. Conclui-se a aventura com o retorno do resignado herói que perdeu sua última oportunidade quando a serpente o lesou; ele faz então seu louvor de Uruk que fecha o poema como um círculo, coincidindo com o "Prólogo". Já no final da última peregrinação, quando Gilgamesh transpõe águas "estígias" "em busca da vida", acha-se o célebre relato do dilúvio, tema principal do argumento da Tábula XI. Gilgamesh remonta a um passado extremo através da narrativa de Utnapishtim, que lhe refere este decisivo acontecimento da história do mundo, quando, de certo modo, o caos se restabelecera, na terra perfusa reinando de novo as águas do primórdio. Utnapishtim, que escapou da catástrofe por intervenção de Ea, recebeu a imortalidade depois da suprema passagem. Para Gilgamesh, não há mais oportunidade... Submetido à prova do sono (que apresentava vestígios de antigo ritual mágico) o pobre herói sucumbe.
Quanto ao motivo que levara os deuses a decretar o dilúvio, no poema acadiano intitulado Atrahasis — outro relato da mesma fonte — ele se acha claramente expresso: o ruído excessivo dos homens.21 Segundo o Ennuma Elish (o grande poema babilônio da criação) idêntica razão impeliu Apsu, o senhor do abismo das águas primordiais, à tentativa de destruir os deuses seus filhos, cujo tumulto o impedia de repousar.22
Com freqüência, no horizonte dos mitos, um vínculo estreito une o raptado ao raptor, o deus que sucumbe ao que lhe impõe a morte; o dragão e seu adversário se compenetram, a bela muitas vezes é a fera. Nos mitos sumérios, Kur (Nergal) rapta Ereshkigal num desempenho monstruoso; noutra versão, é a Rainha dos Infernos que aprisiona o deus.23 Gilgamesh, a grande vítima do "destino de todos os homens", o mortal por excelência, no início do poema é apresentado com as características que o aproximam de um representante do inferno: ele "não deixa o filho a seu pai, a donzela a sua m~e"; os jovens lhe s~o, de certo modo, “sacrificados”: vêem-se entregues a sua tirania, obedecendo a uma imposição que lembra a rigorosa lei de Minos. (A propósito, convém recordar que Gilgamesh veio a caracterizar-se como um rigoroso juiz do Hades mesopotâmico). Se Enkidu, no momento de sua aparição, equivale a uma fera que espanta os homens e que Gilgamesh “domestica” através da prostituta sagrada, por outro lado, Gilgamesh é o violento arrebatador a quem o heróiico Enkidu dá combate.... Segundo comenta Fontenrose (1959:174),
Gilgamesh was a tyrant like Erginos, Eurytos or Yam; he was lustful like Typhon, Tityos or Heros of Temesa; but he was a divine hero and victor in the combat.
Enkidu was at first a savage of fearful aspect, a companion of beasts; but he became lion fighter, and stood forth to combat the gigantic tyrant king. A densidade extraordinária da matéria mítica patenteia-se nesse desenvolvimento. Quando perguntamos quem é um personagem mitológico, não há outro recurso senão contar suas histórias; mas logo verificamos que todo o peso recai sobre a ação, pois esta é o fundamental; as figuras que assinalam seus pólos parecem projetadas pelo gesto constituidor, penetrando-se vivamente como as imagens na dança.
Gilgamesh, herói vagante como outros que bem representam o errar humano, tem uma característica que o distingue entre os protagonistas de epopéia: uma "evolução" pessoal, conformada através da mudança de atitude interior em diferentes pontos de sua carreira heróica. De início, é um jovem tirano que parece desconhecer limites a sua autoridade, até que o encontro com herói igual o obriga a reconhecer a vanidade de sua virtus solipsista. Adiante, torna-se o irmão de armas de Enkidu, que ora o anima, ora tem de ser por ele encorajado. Em um momento decisivo, preocupado com o desalento de seu companheiro, reflete sobre o destino dos homens efêmeros e busca meio de superá-lo; começa, então, a assumir o traço mais notável de sua figura heróica. Assim arrasta Enkidu a aventurar-se com ele, em busca de fama que ultrapasse a curta duração da vida; transforma-se, então, em matador de monstros que encarnam o estreito limite da existência humana. Com a perda de seu companheiro, Gilgamesh vivencia profundamente a realidade da morte, a definitiva certeza da sina que nos envolve e que sempre olvidamos no trivial da existência. Ele sofre de maneira decisiva a revelação de ser mortal: toma consciência plena da sua finitude ao ver finado seu amigo. Pode-se até dizer que ele se torna mortal então... ao dar-se conta disso, como o herói de uma história contada pelo Príncipe Míchkin.24 Impelido por uma esperança desesperada, vai depois aos confins, chega às fronteiras do mundo, para sofrer o último desengano... Herói frustrado, como Adapa, depois da aventura extrema, retorna de mãos vazias tendo chegado onde ninguém alcançou e mesmo à beira do que almejava... Resignado é o retorno, iluminado pela grandeza da perda. Como não brilha o sol para quem conhece a morte! Por isso o louvor de Uruk assume um significado mais rico nesses versos derradeiros; com profunda emoção o ouvimos. É o próprio herói que magnífica sua criação, para a qual possui olhos novos, tendo visto onde ninguém viu.
Depositário da história do dilúvio, ele então aporta à memória dos homens o "tempo perdido": a experiência solitária de Utnapishtim, o grande sobrevivente, testemunha do assalto do Caos.
Um caráter mítico pode corresponder a cada uma das "fases" da evolução interior de Gilgamesh: primeiro, o "raptor", o tirano que personifica a morte a quem um herói dá combate; depois o "Drachentöter", ou ainda o belo herói que encanta a deusa e que esta, depois, procura matar; o soberbo jovem no auge da beleza que repele a senhora do amor; o divino errante que, ao estilo de Héracles, avança para os limites do mundo cumprindo as imposições de um destino inarredável; por fim, o portador de um conhecimento escatológico, o sábio da extrema experiência. Do mesmo modo, Enkidu, que passa de selvagem a herói principesco marcado por uma sina trágica, é, a um tempo, "Senhor das Feras", modelo dos pastores, beneficiário e vítima da ministra do amor, prisioneiro dos infernos...
Gilgamesh leva a morte consigo e a cada passo faz recuar o horizonte. Circunscrito em um limite que conscientiza e estende à medida que tenta ultrapassá-lo, ilustra a humanidade neste seu movimento trágico.
NOTAS DO RODAPÉ:
1 O acadiano é uma língua semita. Seu nome deriva de Acad, ou Agade, centro do império criado pelo famoso Sargão de Acad, que derrotou e capturou o imperador sumério Lugal-Zage-Si, em meados do século XXIII antes de Cristo. Precedidos pelos sumérios, de que herdaram as grandes conquistas civilizatórias, os semitas já se faziam presentes na Mesopotâmia desde o terceiro milênio a. C., quando se estabeleceram ao norte de Súmer. A língua suméria tem origem desconhecida. Acompanhando Bottéro (1989), acreditamos que se deve considerar o resultado histórico do encontro entre sumérios e semitas nessa regi~o um único sistema cultural, uma grande “civilisation hybride”. Mas como ele também adverte (p. 320, “aux deux premiers tiers du IIIe millénaire la prépondérance culturelle des Sumériens semble partout éclatante...” O nome acadiano costuma ser usado para designar genericamente os povos semitas que imperaram na Mesopotâmia (babilônios e assírios também, não só o povo do reino de Acad).
2 A propósito da relação entre as sagas sumérias do Ciclo de Gilgamesh e a epopéia acadiana, ver Matous, 1960.
3 Cf. Serra, 1995.
4 Criada por volta de 3000 a. C., na Época Proto-dinástica.
5 O poema Gilgamesh e Aga de Kish é o que parece ter tido menor importância para a composição da epopéia. Trata de uma contenda entre os soberanos de Uruk e de Kish e não possui um conteúdo heróico relacionável com a Epopéia de Gilgamesh. É possível, todavia, que o episódio desta que mostra Gilgamesh diante do Conselho dos Varões de Uruk tenha sido inspirado em passagem semelhante da referida saga. Além dessas sagas que pertencem claramente ao ciclo de Gilgamesh, cabe citar o poema sumério O Dilúvio.
6 A fabulosa Floresta dos Cedros ficaria no Líbano, ou entre a Síria e o Líbano. Humbaba / Huwawa teve muitas representações na iconografia mesopotâmica, desde a primeira dinastia babilônia até o primeiro império aquemênida. A figuração da cabeça do monstro e de sua decapitação pode ter influenciada o a representação iconográfica da górgona Medusa decapitada por Perseu.
7 Contudo, a lenda de Gílgamos contida nesta passagem não tem correspondência com nenhum dos relatos da epopéia mesopotâmica. Eis uma tradução do mencionado trecho (Ael. De nat. anim. 12, 21: “É também uma característica dos animais o amor pelo homem. Pelo menos, uma águia já susteve uma criança. Desejo contar a história toda, para dar prova do que afirmei. Quando Seuecoro reinava na Babilônia, predisseram os caldeus que quem nascesse de sua filha haveria de arrebatar a realeza ao avô. Este ficou com medo e — se me é permitido o gracejo —, fez de Acrísio com sua filha: impôs sobre ela uma extrema vigilância. Entretanto a moça (pois o destino era mais sábio do que o rei babilônio) pariu às ocultas, grávida que se achava de algum varão obscuro. Os guardas, então, com receio do rei, precipitaram a criança do alto da cidadela, pois era lá que a jovem estava encerrada. Uma águia, porém, que o viu com seus olhos agudos enquanto ainda caía, veio voando por baixo, pôs sob ele o seu dorso, levou-o para um jardim e no chão o depôs, com toda cautela. O guardião do lugar, assim que viu o belo pequeno, tomou afeiç~o por ele e o criou; e ele foi chamado Gílgamos e reinou sobre os babilônios”. O Acrísio a que Eliano faz referência nesta passagem vem a ser o mítico Rei de Argos, avô de Perseu: sabendo por um oráculo que um filho nascido de sua filha Dânae o mataria, Acrísio encerrou a moça em uma câmara subterrânea de bronze e submeteu-a a estrita vigilância. Mas Zeus tomou a forma de uma chuva de outro que penetrou por uma fenda no teto dessa câmara e fecundou Dânae. Quando a criança nasceu, Acrísio mandou lançá-la ao mar em um cofre, junto com a mãe. O cofre-esquife foi lançado pelas águas a uma praia de Sérifo. Assim Perseu salvou-se. Já homem, ele acabou matando seu avô sem querer.
8 A Tábula XII é incorporada a todas as edições e traduções da Epopéia de Gilgamesh, mas na verdade não a integra, isto é, extrapola a composição deste poema enquanto tal. De qualquer modo, convém sumarizar-lhe o conteúdo: O texto começa com lamentos de Gilgamesh, que deplora a queda de seu pukku e seu mikku (tambor e baqueta?) nos infernos. Enkidu, seu servo, dispõe-se a buscá-los e Gilgamesh faz-lhe uma série de recomendações relativas às atitudes que o buscador não pode tomar se quiser ter assegurado seu retorno aos infernos (Trajes limpos não vestirás... Com o óleo suave da jarra não te ungirás... Um cajado nas mãos tu não tomarás etc.); Enkidu, porém, ignora essas advertências e fica retido nos infernos. Gilgamesh vai rogar aos grandes deuses por seu servo; implora a Enlil, Sin e Ea, mas só este último o escuta e diz a Nergal que abra na terra um buraco para que o espírito de Enkidu possa ascender dos infernos e dizer a seu amigo o que nos infernos há; feito isso, ele irrompe como um sopro de vento; choroso, Gilgamesh o interroga e Enkidu lhe revela a condição em que se encontram os mortos nos infernos.
9 Adapa de Eridu, um dos sete grandes sábios da Mesopotâmia, por vezes considerado o primeiro homem, era profundamente devotado a seu criador, Ea. Um poema conta que ele quebrou a asa do vento e conseguiu ascender aos céus, onde foi recebido pelo deus Anu, que lhe ofereceu o alimento da vida (eterna), a água da vida (eterna); Adapa recusou-se a comer e beber, pois Ea lhe tinha recomendado que não o fizesse. Assim o grande protetor de Adapa, Ea, que sempre o favoreceu, negou-lhe a imortalidade.
10 Uma lei irrecorrível do reino infernal determinava - segundo se infere, por exemplo, do relato da descida de Inana aos Infernos, (Cf. Kramer "La História empieza en Sumer" cap. XXIII pg. 225) que só poderia alguém voltar do mundo dos mortos deixando lá um substituto. Vestígios desta concepção encontramos em vários mitos, por toda a Antiguidade mediterrânea.
11 Segundo narra o poema sumeriano que relata a Descida de Inana aos infernos, a deusa retornou do reino dos mortos com uma escolta de demônios encarregados de arrebatar uma pessoa para substituí-la “no grande embaixo”; como o pastor Dumuzi, seu amante, negligenciou a homenagem a ela rendida por todos os outros súditos, acabou aprisionado pela corte infernal e votado à morte. Em um belo episódio da Tábula X da Antiga Versão Babilônica da Epopéia, Gilgamesh dialoga com Shamash, que o adverte da inutilidade de sua demanda, de sua busca de imortalidade; a réplica do Rei de Uruk evoca significativamente o último trecho do poema acadiano sobre a descida de Ishtar aos infernos, trecho este em que se alude à ressurreição de Tamuz.
12 Na mesma região do "mais remoto ocidente", situavam os cananitas o domínio de Mot, senhor dos infernos. Os antigos gregos e romanos tinham crença semelhante. Cf. J. Fontenrose, 1959: 173: “The Mountain of Mashu is identified with the Lebanon and Ante-Lebanon ranges and Siduri's hostelry is placed on the Phoenician Coast of the Mediterranean - that is, both in the region of Mount Kasios, and therefore of Typhon, Yam and Mot".
13 Num vaso do Museu Etrusco Gregoriano" (Vaticano), uma taça ática de figuras vermelhas, datável de circa 480 a. C., Héracles - mítica figura que estreitamente se relaciona com Gilgamesh é representado no interior do áurea taça de Hélios, atravessando assim os mares, à imitação do deus.
14 “Os sóis podem morrer e retorna. /Para nós, quando a breve luz se apaga,/ Perpétua é a noite, o sono um só.”
15 Cf. Od. X:321-345. Quanto à aproximação entre Ishtar e Circe, veja-se Charles Picard, 1922: 491-2.
16 Uma tradução (para o inglês) do poema sumeriano Gilgamesh, Enkidu e os Infernos é acessível no site do ETCSL (Eletronic Text Corpus of Sumerian Literature) disponibilizado pela Universidade de Oxford http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.8.1.4#
17 Etana figura na legenda mesopotâmia como um legendário soberano de Kish, citado na Lista dos Reis de Súmer como “o pastor que subiu aos céus”. A tradução do Poema de Etana por Benjamin Foster pode ser lida no site http://www.angelfire.com/tx/gatestobabylon/mythetana.html
18 Os ritos de boda e a iniciaç~o dos núbeis s~o “ritos de passagem". No seu cl|ssico Les Rites de Passage, A. Gennep já chamava a atenção para a grande semelhança verificável em diferentes culturas entre cerimônias que celebram esses distintos eventos. Na Grécia, por exemplo em vésperas dos esponsais as noivas votavam a Ártemis uma mecha dos seus cabelos — primícia significativa, que lembra o corte de pelos das vítimas a sacrificar — e antes disso, na cerimônia chamada protéleia, dedicavam seus brinquedos e trajes de moça a esta mesma deusa; recorde-se que, segundo a crença dos helenos, Ártemis dava às mulheres a morte branda, com suas rápidas flechas. As ligações dela com a infernal Hécate são bem conhecidas... Na tragédia de Eurípedes Ifigénia em Áulis diz o mensageiro, referindo-se à heroína (vv. 433-434): "A Ártemis, rainha de Áulis, eis que votam (protelízousin) a moça; quem a desposará?" Na verdade, como sabemos, é a morte que espera Ifigênia. Já na famosa peça de Sófocles a infeliz Antígone numa de suas últimas falas assim estranhamente se exprime (vv. 891-892): "Ó túmulo, ó alcova nupcial, cárcere subterrâneo da eterna morada para onde me vou..." Somos levados a rememorar o mito de Perséfone raptada por Hades e submetida ao sinistro esponsal.
19 Publicado por J. Friederich no número 39 (1929) do Zeitschrift für Assyrie und Verwandte Gebiete, p. 2-5.
20 Já em uma saga sumeriana — uma das "fontes" da Epopéia — , Gilgamesh aparece como o herói régio inconformado com a morte, cuja fatalidade não quer admitir, segundo ele aí demonstra em sua dolorosa queixa a Utu, quando parte em busca da “imortalizaç~o” pela fama: "Na minha cidade o homem morre, com o coração aflito... também eu deste modo serei tratado!"
21 A Tábula XI da Epopéia de Gilgamesh é praticamente uma paráfrase do texto da Tábula III da epopéia babilônia Atrahasis. Cf. Tigay, 1982. Uma tradução do texto sumério (por Kramer) encontra-se em Bottéro; Kramer, 1989: 564-575. Na mesma coletânea (p. 527-564) é dada a tradução (de Bottéro) do poema Atrahasis.
22 Quanto ao Ennumah Elish, uma sua tradução comentada é disponível em Bottéro; Kramer, 1989: 602-679. Eusébio transmitiu uma outra narrativa do dilúvio mesopotâmico, extraída da perdida História da Babilônia de Beroso. Pode-se resumi-la assim: Quando reinava Xiusutros (Ziusudra?) teve lugar um grande dilúvio. Mas Cronos (Ea) havia prevenido o rei, ordenando-lhe a confecção de um grande navio. Xiusudra carregou a embarcação com mantimentos e animais de todas as espécies, entrando nela com a família e séquito e respondendo aos curiosos conforme o deus lhe instruíra. Ao fim da catástrofe, de pouca duração, depois de ter despachado os pássaros para saber da estiagem, ele finalmente deixou o navio e ofereceu aos deuses um sacrifício. Posto isso, Xiusutros desapareceu; uma voz misteriosa informou ao pessoal restante que o rei, sua esposa, sua filha e seu timoneiro tinham-se tornado imortais e encontravam-se na Armênia; ao mesmo tempo ordenava-lhes a Voz que fossem para a Babilônia e de lá a Sippar, onde encontrariam conservados os escritos antediluvianos. Estes outros sobreviventes ofereceram novos sacrifícios e fizeram o que lhes fora prescrito, repovoando assim a Babilônia. A Mesopotâmia conheceu em eras remotas muitas grandes inundações; uma delas, de maior vulto, pode ter argumentado a tradição primitiva que a elevou a catástrofe mundial. No entanto, em muitas outras partes do mundo há mitos de dilúvio...
23 Do mito de Nergal e Ereshkigal foram resgatadas duas versões em acadiano. A tradução de ambas (com notícia filológica e comentário) pode ler-se em Bottéro; Kramer, 1989: 437-464.
24 O Príncipe Míchkin é o protagonista do romance O Idiota, de Dostoiwsky. O herói da história em apreço, condenado ao fuzilamento, foi indultado na véspera; mas dizia que apesar do indulto a condenação já fizera efeito... o terrível efeito de o revelar mortal.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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